Ivete já não era mais tão bonita assim. Tinha murchado, perdido a vivacidade e a leveza de seu olhar. Tinha uma expressão pesada, angustiada e marcada por olheiras profundas que denotavam sua infelicidade.
Mal se reconhecia aquela garota que na infância e adolescência vivia a cantar e dançar, que alegrava e encantava a tudo e a todos.
Praticamente já não saía de casa, somente quando estritamente necessário para compras no mercado. Mas procrastinava ao máximo, quando não era sua leal e fiel irmã Ieda que frequentemente a visitava e provinha sua despensa de comidas e produtos. Ieda era sua única comunicação com o mundo lá fora.
Desde que seu marido saíra de sua casa se manteve neste claustro, isolou-se e afundou-se no seu desgosto e seu vazio existencial foi preenchendo tudo e a todos. Até que não sobraram amigos, vizinhos e nem família.
De tanto sua irmã insistir, Ivete teve que ir contrariada consultar uma xamã que morava nas montanhas próxima à Chapada dos Veadeiros.
Era uma viagem longa, mas necessária. Ivete mal olhava pela janela do carro a paisagem, ensimesmada em sua tristeza e fardo que persistia em carregar.
Chegaram na cidade e pediram informações para chegar na casa da xamã. Disseram que era num vale cercado por montanhas, completamente isolada.
Quando o carro apontou na chácara da xamã vários animais apareceram: cabras, gansos, galinhas, pavão, pássaros, gambás, cachorros e até mesmo um teiú. Se indagaram como todos aqueles animais tinham ido parar naquele local isolado e como a dita cuja xamã dava conta de alimentar e cuidar de todos.
A xamã foi avisada da nossa chegada pela barulheira que os animais aprontaram. Tinha uma aparência estranha, usava peles e penas na roupa, cabelo desgrenhado, mas uma expressão firme e doce no olhar. Usava roupas simples e estava descalça. Além de tudo percebia-se que mal enxergava. Seu nome era D. Luz, mais conhecida como xamã Luz.
Ivete tremia feito vara de bambu, Ieda se apresentou mas Luz foi direto pegar na mão de Ivete e disse:
—Tantas trevas que é difícil enxergar a sua luz! Por que se ofusca tanto? Tens vergonha do seu brilho? Se ofusca para que outros possam brilhar mais do que você?
De repente do nada um vendaval atingiu a propriedade da senhora, tão arrojado que derrubou algumas madeiras e ferramentas que estavam encostadas na casa. A velha imediatamente alertou:
—Vamos entrando filhas. Vamos rápido! Que seus inimigos querem afrontá-la!
Entraram na casa, muito humilde mas muito arrumada, que cheirava a ervas. Havia dentro da casa 2 gatos e na cozinha um corvo preto.
—Me conte um pouco de você querida. – disse a velha anciã.
—Desde que meu marido saiu de casa para viver com outra mulher, que inclusive eu conhecia, a vida tornou-se um fardo duro de carregar. Nem filhos pude ter! Não tenho vontade de sair nem da cama, não tenho fome e vontade de fazer mais nada. Nem chorar tenho mais forças.
—Fia, você entregou seu poder pessoal para os outros. Mas somente uma pessoa pode trazer a sua felicidade, todos somos seres plenos e completos, o outro nunca preencherá esse vazio que tem dentro de si. Somente você tem esse poder, de se preencher a si mesma, de juntar todos os cacos e colar pecinha a pecinha do seu ser, como uma colcha de retalhos. O que os outros fazem ou deixam de fazer para conosco não é nosso departamento, somente nos resta saber o que fazer com o lixo que jogam na gente, podemos escolher ficar sujos e fedidos ou podemos escolher reciclar e transformar esse lixo em adubo. Querida qual será sua escolha?
Ivete olhava a xamã assustada, meio que se encolhendo ao toque amoroso da mulher, que agora a defumava com um charuto feito de ervas que parecia o cheiro de maconha, mas que na verdade era Artemísia.
Continuou sua argumentação: —Todos somos seres plenos, completos e perfeitos, nossa matéria prima principal é a luz, o que nos turva são nossos medos, pensamentos negativos, egoísmo, mágoas e bagagens que nem mesmo nos pertencem e que inconscientemente carregamos de nossos ancestrais. Isso tudo deturpa e nos sobrecarrega na nossa jornada, que deve ser leve, alegre e plena. A nossa felicidade cabe exclusivamente a nós, quando aprender a ser feliz sozinha, aprenderá o segredo de amar e ser amada. Você somente pode dar o que já possui. Não pode ensinar a um analfabeto a escrever a não ser que aprenda o alfabeto, aí sim poderá ensiná-lo a ler e a escrever. Você ama como uma adolescente: aprisiona, cobra, depende, chantageia, transformando o outro num objeto a ser possuído e não amado e livre como deveria ser.
—Meu marido me dizia que sentia-se preso, atado. Mas não sei como fazer isso e acho que nunca irei conseguir! – choramingou Ivete com lágrimas nos olhos.
—Vou me ausentar por uma semana. Vocês vão se hospedar aqui em casa e durante essa semana vou deixá-la com o melhor terapeuta para sua doença! – sorriu a xamã.
—Com quem?
—Meu gato Amor-próprio! Ele é mestre na medicina do amor, conviver com ele te ensinará como amar de forma livre. Gatos não pertencem a ninguém e retornam quando querem, não deixam de cumprir sua própria missão ou fazer o que gostam para estar com outros.
Ivete não pareceu muito convencida disso, mas já que tinha vindo de tão longe! Fez cara de desdém e incredulidade.
A xamã partiu de carona e deixou-as com uma série de recomendações e “tarefas” a serem realizadas.
Durante toda a semana colheram ervas, alimentaram os animais e cuidaram da casa da xamã Luz, Ivete não estava otimista quanto ao prognóstico de sua depressão. Mas cumpriu e realizou tudo o que a xamã havia lhe pedido para fazer.
Fez um ritual chamado vaporização do útero que consistia em deixar o vapor d´água com ervas penetrar pela sua vagina na posição de cócoras. Luz explicou que tudo isso era para limpar suas memórias de relacionamentos abusivos e de suas ancestrais mulheres, pois no útero estavam gravadas memórias de dores, perdas, abusos e abortos, que ao se limpar romperia o ciclo de transmitir essas memórias aos seus descendentes.
Fez tudo isso completamente descrente, mas depois da vaporização chorou copiosamente, se lembrando de 2 abortos inicialmente e depois de memórias de abusos sofridos por um tio durante a infância. Foi um choro misturado de revolta e desejo de vingança. De tanto chorar neste dia, cochilou. Durante o sonho teve sonhos reais e lúcidos com sua avó materna já falecida, que trançava seus cabelos e depois a ninava em seu colo. Acordou restabelecida, forte e lúcida, tinha certeza absoluta que estivera com sua avó materna e que esta ainda permanecia junto dela transmitindo força e fé que nunca mais teve depois da adolescência.
O gato Amor-próprio quase nunca ficava na casa, mas durante todo o processo de reconexão com suas ancestrais e limpeza do ventre esteve junto e no colo de Ivete. Só saiu quando esta se encontrava melhor e “muito bem acompanhada” de suas ancestrais.
Entoaram mantras e bordaram.
Nos próximos dias sua menstruação desceu, evento que a xamã lhe havia explicado que o nome correto era “receber a Lua”. Pintou mandalas com o sangue menstrual e regou uma planta presenteada pela xamã com sangue diluído. Tudo isso para que seu sangue retornasse à Terra, fertilizando-a.
Logo mais a xamã Luz chegou, fitou-a e pegou em suas mãos e disse:
—Já não está mais aqui aquela mulher que me procurou na semana passada, você se transformou. Está mais leve, livre de amarras e de necessidades que achava que necessitava. De ilusões que acreditava serem imprescindíveis e de apegos que a aprisionavam. O amor só retorna se for livre para ir e vir, só acontece quando estamos inteiros e curados. Corações feridos com mágoa e ressentimentos não podem verdadeiramente amar. Não completamos um ao outro, somos completos e encontramos alguém para compartilharmos a jornada, não necessariamente por toda a vida, mas pelo tempo necessário e instrutivo a ambos. Um coração leve e inteiro bate no ritmo da alma e por ressonância atrai um coração semelhante.
—Amor-Próprio te auxiliou, transmutou seus sentimentos negativos, mágoas e tristezas. Te acompanhou durante tua jornada de alma até que estivesse bem e depois saiu para cuidar de sua própria vida. Mas está aqui agora para compartilhar contigo esses momentos de gozo, libertação e alegria. São ótimos companheiros, mas não se prendem a nada e nem a ninguém, esta é a sua medicina. E assim deve ser o amor, livre. Pois assim há respeito, o que permite que o amor seja sempre nutrido.
Neste momento o gato saltou sobre o colo da xamã. Que abriu um doce sorriso.
—Eu te benzo e abro todos os seus caminhos para que encontre um coração inteiro, que bata no mesmo ritmo do seu e que juntos perpetuem seus materiais genéticos e expandam esse amor em forma de filhos. É o que sinceramente desejo de coração querida Ivete.
Ivete e Ieda tomaram um chá com a xamã Luz, se abraçaram e se despediram, antes de partir ouviram uma loba uivando.
Ivete pensou, bom sinal…
E retornaram para casa ao som de Ivete cantarolando por toda a viagem.
Grata!
Namastê!!!